Nunca encontrei ninguém completamente incapaz de aprender a desenhar.

John Ruskin, intelectual inglês do século XIX


Pensamos que o Diário Gráfico melhora a nossa observação, faz-nos desenhar mais e o compromisso de colaborar num blogue ainda mais acentua esse facto. A única condição para colaborar neste blogue é usar como suporte um caderno, bloco ou objecto semelhante: o Diário Gráfico.


Neste blogue só se publicam desenhos feitos de observação e no sítio

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Ornitólogo de Jardim

(antes que perguntem - não, ainda não tenho blog)

melros, pombos e uma andorinha-dos-beirais

Suponho que seja mal comum darmos connosco de suspiro fácil esgueirando garganta afora com o pensamento posto em lugares distantes, em culturas diferentes, em passarada fina exótica - bom este último exemplo alguns mais que outros. E que quando lá chegarmos é que vai ser, desenhos a torto (tordo?) e a direito, páginas e páginas de vertigem desenhadoira, um manancial de imagens que metem os mil-e-quinhentos-mega-pixéis a um canto. E esfregam-se as mãos num comportamento relíquia como quem acende fogueira com raminhos secos...

Pelo menos comigo é assim.

Isto cada um sabe de si (e Deus Nosso Senhor sabe de todos, dizem), mas depois de algumas idas lá ao tal sítio exótico e lindo e fascinante, constato que afinal não me fica assim tanto no diário. Se calhar é ser-se lambareiro, mas poucas foram as viagens em que deu para desenhar à saciedade. Ou é a companhia, ou é a falta de tempo, ou a frustração, ou o alinhamento astral que não é o mais favorável, ou sei lá o que mais. Ou a falta de preparação.

Há que manter a mão educada. Há mil e uma razões para desenhar frequentemente, pela pausa, pela cronologia, pelo registo. Manter a mão treinada é meio caminho andado para um registo satisfatório. Bom, talvez não tanto, mas lá que ajuda, ajuda.

E é com isto em mente que tenho ido quinze minutos por dia para o jardim, um qualquer. Desde que com algumas aves. A ideia é simples, familiarizar-me muito bem com o que há à mão, para que quando o que não há à mão estiver à mão não falhar a mão. Simples, não?

E neste processo de desenhar o corriqueiro aprende-se sempre tanto. Nos quinze minutos no jardim tenho observado os melros a procurar comida para as crias que silvam nos ramos acima da minha cabeça, visto o modo como os pardais rondam e se aventuram por entre os gigantescos pombos para sacar aquela migalha, como voam baixo os andorinhões se a chuva ameaça. Apanha-se isto pouco a pouco, com paciência. E a pouco e pouco vai ficando a morfologia das aves. São quinze minutos sempre muito bem empregues (que gastos são os sapatos).

E quando chegar o dia da viagem prometida, do agora é que vai ser, pois então, será.

Ou isso ou me resigno ao facto de que o sítio lá longe para o resto do mundo, o da cultura exótica e paisagens únicas, da passarada fabulosa, é aqui.

E é mesmo.

Ficha técnica
data: 25 a 27/06/2009
material: Moleskine Sketchbook 9x14; lapiseira 0.5
banda sonora: som ambiente

12 comentários:

Eduardo Salavisa disse...

Bonito texto. E úteis conselhos. Já sem falar nos desenhos. Mas penso que acontece aos melhores. Isso de irmos com muitas expectativas e ... acontecer muito pouco.

Ketta disse...

Olá PeF,

Gostei muito de ler o seu texto.

Durante o meu processo de aprendizagem na instituição-escola era frequente ouvir dizer:
"Só vai para Artes quem tem jeito. Desenhar é um dom."

"Clic". Fez-se luz.

Com o treino e a prática de um desenho por dia (no mínimo) descobri que andei enganada durante vários anos da minha vida.

Fui a tempo de me redimir.

Lindo texto a acompanhar lindos desenhos. Motivador para todos os comuns mortais =)

Abraços
k

Cate disse...

"E é mesmo!" Aqui há tudo para manter o espírito desenhadeiro activo e bem alimentado! Boas paisagens e temas, boas gentes e boa companhia!

Unknown disse...

"A ideia é simples, familiarizar-me muito bem com o que há à mão, para que quando o que não há à mão estiver à mão não falhar a mão. Simples, não?"
Conseguir ser poeta, dar uma lição de desenho e ainda filosofar é só para alguns...
Essa pequena busca de algo no quotidiano, o encontrar de uma forma ou um saber é de facto tentadora... neste momento ando sem tempo algum para o poder fazer por todas as razões, mas tenho desenhado, infelizmente sem tempo para colocar os desenhos aqui...
Gostei muito do texto, dos quinze minutos por dia e espero que consigas horas reais no país, na região, no chamado pulmão do mundo, para contemplares sem stress's as aves exóticas e puderes cheirar e ouvir ao vivo sem teres de imaginar ou sonhar com tal...

Erica disse...

Belos desenhos, belo texto, belas ideias, bela poesia, bela lição e belo sentido de humor. Acho que estou a ficar um bocado repetitiva, bah...bela continuação de belo trabalho!

PeF disse...

Obrigado a todos.

Eduardo: é bem verdade. Isto nem é bem um lamento. É mais uma constatação do tipo "não se pode ter tudo". E nem só de diários gráficos vive um homem...

Ketta: trata-me por tu, já nos conhecemos (a não ser que isso te faça confusão, mas para mim a terceira pessoa é uma pessoa a mais numa conversa a dois). A estória do dom é das coisas que mais confusão me faz. Mas cabe na cabeça de alguém que um recém-nascido já nasça com a destreza nas mãos? É ir trabalhando e os resultados vão aparecendo! E quanto a comuns dos mortais, somos todos. Só que alguns já andam nisto há mais tempo.

Cate: É bem verdade. Sem chauvinismos (longe disso!), isto aqui é tão especial como qualquer outro lugar. E tem a vantagem de estar mesmo à mão de semear. E depois há a comida, não te esqueças da comidinha!

Rosa: Poesia e filosofia, a serem tal, parecem-me felizes acidentes de percurso. Isto era eu em devaneios mais ou menos estruturados acerca da infâme condição humana, tão bem cantada pelo António Variações. Mas obrigado pelos elogios. E as horas... hão de ser as que forem e onde quer que seja. Aqui ou no pulmão do mundo.

Erica: Açambarcando uma expressão de Terras de Vera Cruz para tal, só me ocorre dizer: "Beleza..."

Isabel disse...

impressiona-me ver estes estudos de aves tão completos e cheios de pormenores. a mim parece-me ume dificuldade poder conseguir tanta informação desta passarada que não para um segundo para a pose é realmente esta vontade de observar e comprender e estes 15 minutos diarios que vão fazer a diferença maravilhoso o texto e o desenho

PeF disse...

Isabel: são 15 minutos repetidos ao longo do tempo, a coisa acaba por decantar e ser absorvida (se for caso disso!, sem empatia com os objectos de estudo a coisa é mais complicada). E há lacunas que são preenchidas pelo que sabemos que está lá, mas não conseguimos ver porque a ave não parou quieta - é um compromisso entre o que conseguimos de facto ver e o que sabemos lá existir.

Aí na Mauritânia estás muitíssimo bem servida de boa e numerosa passarada - por exemplo no mítico Banco de Arguin (entretanto fui dar um olhinho no teu blog e vi que estás a trabalhar num projecto sobre a biodiversidade dessa área, parece um projecto bem interessante e meritório).

Para quando sketches in-loco dessa área tão rica e importante..?

E parabéns pelo blog.

Filipe LF disse...

PeF a acertar na mouche mais uma vez.
Já te sabia de pena afiada para os desenhos, mas para as palavras foi uma surpresa...
O desenho que fica nunca é o ideal é sempre o material. São sempre linhas ou manchas sobre um suporte, sem apelo nem agravo.
Parabéns e um abraço

PeF disse...

Filipe: obrigado. É uma boa maneira de descrever os registos. Mas raras, raríssimas vezes, conseguimos o ideal. Mas de longe a longe...

Ana Oliveira disse...

Eu andava mesmo curiosa para ver esta tua passarada urbana! :)
E que bom estares a blogar também..
Beijinhos!

PeF disse...

Ana: ainda bem que gostaste. Fui convidado para participar neste cantinho e cá estou, "blogando" de quando em vez. Beijinhos para ti também.